terça-feira, 1 de abril de 2008

Cadão Volpato

P - Antes de entrar para a banda (fevereiro de 1984) você era revisor da revista Veja. Como era o trabalho por lá?

R - Era um emprego engraçado, eu trabalhava quarta, quinta e sexta de madrugada, isso no tempo em que a revisão era a única coisa computadorizada lá dentro. Então eu ficava enxergando aquelas letrinhas verdes até de manhã. Atravessava a noite trabalhando, mas tinha o sábado, o domingo, a segunda e a terça livres. Esse fato deve também ter ajudado na confecção da banda porque a gente podia ensaiar no sábado (risos). O que eu fazia era reler os textos e ver se tinha algo errado. Seria praticamente um copy-desk, mas os textos da Veja eram muito bons então a gente não tinha esse tipo de preocupação. Havia um outro serviço no qual se fazia um levantamento de todas as informações que eram veiculadas pela revista e a checagem delas. Um exemplo, o de Pedro Álvares Cabral. Era checado desde a grafia correta do nome dele até o dia exato em que ele descobriu o Brasil e se ele descobriu mesmo o Brasil, isso eu cheguei a fazer depois. Trabalhei quatro anos na Veja, o segundo trabalho que fiz lá foi checagem, depois fui repórter, mas na época do Fellini fazia revisão.

P - Como foi o processo de formação do Fellini?

R - O Thomas já tinha outras bandas, tocava bateria no Voluntários da Pátria e no Smack. Não sei se o Smack já existia, deve ter vindo alguns meses depois, mas a grande vontade do Thomas era tocar baixo. Ele me chamou e disse que queria montar uma banda na qual ele tocasse contrabaixo e que eu fizesse os vocais e todas as letras. Nessa época eu tinha uma pretensão literária, o Thomas sabia disso pela nossa amizade, e ele resolveu sugerir que as letras fossem compostas por mim. A gente se encontrou num bar ao lado do lugar onde eu morava com o Alex Antunes (jornalista e também letrista do Akira S.) e o Minho K., que já chegou a tocar no Fellini uma vez. Nesse bar nós estávamos conversando e perguntei que nome dariamos a banda. Ele respondeu: '’que tal um nome estranho?” Nessa época estava muito em voga os nomes mais deprês, mais darks, e nós queriamos sair um pouco disso. O Thomas disse que tinha pensado nuns nomes engraçados, tipo Fellini, por exemplo. Respondi que estava ótimo. Foi o primeiro nome e foi o que ficou. Então chamamos as outras pessoas que seriam o Jair Marcos, que já tocou comigo em outras ocasiões, mas assim uma coisinha muito de leve na minha primeira tentativa de fazer vocal, e o Ricardo, que tinha aparecido nessa primeira tentativa, mas depois tinha desaparecido em seguida. Achamos que eles podiam tocar na banda, mas ninguém tocava nada, e isso que é engraçado.

P - O primeiro show do Fellini foi no extinto bar Albergue. Onde ficava?

R - O bar ficava na Treze de Maio, no Bixiga. Aliás, ele foi soterrado pouco depois. Não tínhamos onde tocar e acabávamos nos lugares mais esquisitos. O primeiro show que a gente fez fazia parte de um triângulo de shows. Era a primeira apresentação da banda do Minho K. com o Alex Antunes, o Nº2, um projeto todo intelectual, bem legal por sinal. Havia uma outra banda, a do Walter de Silva cujo nome não vou lembrar, e o Fellini. A banda do Walter tocou, mas acabamos abrindo porque o Minho K. teve um desmaio de tanto beber e não pode se apresentar. Ninguém conseguia levanta-lo e eles não tocaram. Foi a primeira apresentação abortada do Nº2.

P - Qual foi a resposta do público?

R - Eu acho que as quinze pessoas que estavam lá fizeram “clap clap”...Sabe aqueles clap clap assim desritimados e “o próximo, por favor!"(risos). Foi uma reação absolutamente fria, não foi nada especial (risos). Para chegar nesse primeiro show a gente ensaiou, você nem imagina...(risos). O Ricardo não tocava bateria, o Thomas era o melhor instrumentista, junto com o Jair, mas ele estava começando no baixo, e eu cantar que era bom...(risos).

P - O primeiro disco, editado pela Baratos Afins saiu em 1985 pela Baratos Afins. Quase que não foi editado. Luiz Carlos Calanca teria relutado na primeira audição da fita, depois gostou. Como foi esse processo de negociação? Como se deram as gravações desse Lp?

R - A gente em 1985 quis lançar o primeiro disco. Era fundamental lançar alguma coisa, era importante registrar o que a gente estava fazendo porque tínhamos muitas musicas. Eu me lembro que a primeira coisa que o Thomas fez quando entramos em estúdio foi fazer um mapa dos canais. Gravamos em oito canais e cada um tinha uma coisa. Isso é trabalho de um produtor. O Thomas tinha pensando em incluir violoncello, e a gente colocou numa das músicas. Uma coisa que nos inspirou muito na época foi pensar na sonoridade do Seargent Peppers, do Beatles. Inclusive numa das músicas que é Funziona Senza Vapore chupamos um pedacinho do "Good Morning" que tem o galo cantando (Cadão imita o galo). Existem vários outros elementos engraçados e tudo isso foi pensando em fazer um disco que tivesse essa sonoridade estranha, esquisita. Nós pensávamos muito em Beatles nessa época. As gravações foram um barato, muito divertidas mesmo. Eu não me lembro o nome do estúdio, mas era numa travessa da avenida Sumaré, num lugar que tinha várias casinhas em seqüência. Antes disso só gravamos uma demo tape que serviu como base, mas o resultado final ficou bem diferente. Foi o primeiro momento em que a gente fincou o pé e disse 'pô, a gente é capaz de fazer'. E era uma coisa esquisitaça, partindo das letras. Tinha uma música toda cantada em alemão que era composição total do Thomas, uma das raras letras que ele fez. Chama-se "Zäune". As gravações foram muito legais. Você fala de um certo estranhamento do Calanca, mas ele apostou. Era um som muito esquisito, qualquer pessoa ficaria com um pé atrás. mas o Calanca foi lá e bancou.

P - Por que existe nos títulos dos dois primeiros LPs uma perspectiva do fim da banda? Isso foi intencional?

R- O nome "O Adeus de Fellini" surgiu exatamente por causa de um disco do Durutti Collumn chamado "The Return of Durutti Collumn" que é o primeiro disco desse projeto do qual eu gostava muito. O espírito deles era muito legal, aquela coisa trabalhada com bateria eletrônica, que foi uma coisa que a gente começou a usar depois, nos agradava muito. O título do disco era uma piada. Na verdade, partíamos sempre de um pressuposto entre o limite da piada e do nonsense. O Fellini não chegava a ser um Língua de Trapo e nem Os Mulheres Negras, que aliás são posteriores, eu acho, mas trabalhávamos sempre nesse limite do humor e para nós seria interessante o primeiro disco já ser um adeus. Acabamos ficando marcados por isso. Vira e mexe a gente estava falando que ia acabar e o espírito se confundiu, mas o nome é por causa do "The Return of Durutti Collumn" e fizemos o contrário: "O Adeus de Fellini".

8- Rock Europeu foi um hit. Eu queria que você fizesse um comentário dessa faixa que é a carro-chefe do repertório do Fellini, tocou em rádio...

R- Esse é nosso problema, essa faixa perseguiu a gente. Mudamos e começamos a fazer samba eletrônico. Íamos tocar e o público pedia "Rock Europeu!". Essa música é a cara de uma época, aquela levada meio New Order, que é bem característico do ano de 1985. Foi uma das primeiras músicas que compusemos. Lembro direitinho como foi o processo: o Thomas apareceu com uma linha de baixo, o Jair colocou uma linha de guitarra em cima e eu botei aquela letra... É engraçado porque chegamos a renegar essa música pelo fato de não ter nada a ver com o espírito que foi avançando no tempo. A letra falava sobre o que era o rock para a gente naquela época, um rock de sotaque inglês, era o rock inglês. Eu falava de coisas engraçadas, acabei citando o grupo alemão Fel Färben num trecho. Era um tipo de postura frente ao rock feito naquela época. Na verdade era uma postura diferente, queria sair do país.

P - No segundo disco, "Fellini só Vive Duas Vezes", Thomas e você ficaram com os instrumentos. Como é que ficou a divisão? Quem tocou o quê?

R - O "Fellini Só Vive duas vezes" foi gravado em quatro canais na sala de visitas da casa do Thomas, na rua Oscar Americano. Nosso método de composição era sempre assim: o Thomas vinha com uma linha de violão, o grupo se reunia e colocava alguma coisa ali. Eu colocava um vocal em cima, cantava, fazia a melodia e depois fazia a letra. Dessa vez, ficamos sozinhos, eu e o Thomas. A gente acabou o grupo durante uma época e depois retornou. O Ricardo tinha saído para se casar e o Jair não me lembro bem porque ele saiu. O Thomas apareceu e falou: “vamos gravar”. O nosso grande barato era ficar em estúdio experimentando. E o resultado é que esse é o meu disco predileto até hoje. Têm todo um trabalho das capas, eu que desenhei a capa. A cor azul eu tirei de um disco de R. E. M....

P - Vocês sempre trabalharam com cores diferentes na capa. O primeiro disco é verde, o segundo é azul, o terceiro é vermelho e o quarto é amarelo. Isso é intencional?

R - Totalmente intencional, não sei bem o porquê. Era só para diferenciar um do outro (risos).

P - Desse LP é tirado o primeiro clip: "Burros e Oceanos". Por que ele está fora de circulação? A MTV não poderia exibi-lo agora?

R - O Thunderbird (veejay da MTV) ficou me procurando um tempão para achar a cópia desse clip. A história é assim: eu tinha uma namorada e a prima dela trabalhava na Olhar Eletrônico (produtora do clip). Ela poderia usar o equipamento da Olhar para produzir um vídeo por conta e resolveu fazer um clip com o Fellini. Nós fizemos o vídeo e havia um concurso para se saber qual seria o melhor vídeo de São Paulo, não me lembro que concurso era. Só que para ser incluído nesse concurso, tinha de passar antes numa pré-seleção com os donos da Olhar. Um deles, que era um grisalho meio estúpido, disse que o clip não tinha nível para representar a produtora. Eu bati boca com esse cara na hora, isso é bem o meu estilo, diga-se de passagem, e disse 'você não sabe de nada...'. Mas o nosso vídeo acabou sendo classificado e o dele não passou nessa pré-seleção.

P - Grande parte da crítica especializada afrima que "Três Lugares Diferentes" é o melhor Lp do Fellini. Você concorda com isso?

R - O "Tres..." foi gravado em oito canais. Era um grande avanço, o dobro de canais que a gente usou no primeiro. (N. da R.: a ficha técnica do disco informa que as gravações foram feitas em quatro canais). O que eu acho que ele tem de positivo é o trabalho de percussão do Silvano Michelino, que hoje trabalha na França. O cara é muito bom. Ele deu uma vida para o que estávamos querendo. Misturamos isso com bateria eletrônica. Acho que esse disco concretiza a nossa experiência, mais do que o segundo, que era uma coisa intermediária, era a entrada do samba no nosso esquema, um samba com uma batida quebrada, esquisita. O que nos diferencia, eu acho, desses grupos que querem enfiar o samba por enfiar. Para nós, parecia uma coisa natural. Conseguimos cavar um jeito de interpretar que não existia.

P - Você poderia explicar os tapes falados incluídos em trechos de "Três Lugares Diferentes"?

R - Um, em alemão, é do Axel Sommerfeld. Ele mandou um tape para o Thomas no qual tinha uma gravação do programa do John Peel, um inglês que é um dos maiores disk-jockeys do mundo. E ele tocou "Outro Endereço, Outra Vida" na BBC Radio. Talvez o Axel tenha reproduzido essa fita com a música e a fala do John Peel no seu próprio programa de radio na Alemanha. A gravação que traz o John Peel anunciando "Outro Endereço, Outra Vida" está nesse disco também. Depois que essa música foi tocada na BBC, nós recebemos dez cartas da Inglaterra. Uma delas é de um presidiário dizendo que amava o som da gente. Enfim, recebemos dez cartas por conta de ter tocado uma única vez no programa do John Peel. Uma outra gravação é de um gaitista, o Sugar Blue. O Thomas como jornalista, trabalhando para Bizz, foi entrevista-lo e achou que era muito legal o que ele falava. 'Músca não é para banqueiros, música é um estado de alma...', dizia. Era uma declaração de princípios. Como a gente tinha entrado com gaita, então casou. E tinha uma gravação com o Osmar Santos. Nós fomos até o programa "Balancê" e ele tirou o maior sarro da nossa cara (risos).

P - Com a inesperada repercussão de "Três...", foi adiado o fim da banda. Havia um projeto de mandar demos para grandes gravadoras. Qual foi o retorno obtido?

R - Isso nunca deu em nada. Ninguém respondeu. Era burrice deles, talvez porque o som que se faz hoje é muito próximo disso. Se fossemos lançar um trabalho hoje, teríamos muito mais espaço. Era um som que é a cara de São Paulo. Uma coisa que me deixou confiante no que fazíamos foi quando a Per Lui, uma revista italiana de vanguarda, fez uma matéria com o Fellini. Eles achavam que a banda representava o espírito de São Paulo. Acho que estavam certos: um nome italiano, uma proposta cosmopolita urbana e uma mescla de samba eletrônico e que talvez passasse um pouco por Mutantes. Tinha muito disso.

P - Os integrantes dos Titãs não teriam gostado de declarações suas e do Thomas quando "Três Lugares Diferentes" conquistou o prêmio de melhor lançamento do ano, empatando com um disco dos próprios Titãs. Como é que foi essa polêmica?

R - Foi engraçado porque a gente saiu numa reportagem de capa do Caderno 2 naquela época e veio à minha boca o seguinte comentário: "Os Titãs são os alternativos oficiais". Os caras ficaram putésimos. Teve uma certa briguinha, mas depois nos encontramos em outras ocasiões. O problema é que na época, ouvi dizer, não posso te garantir, estávamos entrando em contato com a gravadora deles, a WEA, e parece que eles chegaram na orelha do Liminha (N. da R.: famoso produtor de discos) e nos limaram. Isso foi o que eu ouvi na época, mas não posso garantir porque não estava lá para ver. Esse tipo de coisa não é do feitio deles. O Belloto é gente fina, mas eles ficaram bravos.

P - Como foi a saída da Baratos Afins? Foi amigável?

R - Nós entramos de novo para gravar, começamos a trabalhar em novas composições e fomos buscar novas sonoridades. Achamos que não ia dar para lançar pela Baratos Afnis, não lembro por qual razão, mas a saída não foi amigável. O Luiz Calanca é um cara muito personalista...(pensa) Personalista não é a palavra... Eu acho que ele é muito gente fina, mas é um cara dado a pequenos rancores, como todo ser humano. Ele se sentiu meio abandonado pela gente, talvez estivesse com a razão. Eu sei que hoje em dia somos amigos de novo, conversamos sempre que é possível. Acho o Luiz uma simpatia, gente finíssima. Se ele não tivesse apostado no que fizemos...evidentemente que não ganhamos nada pelos discos, mas também não gastamos.

P - E o acerto com a Wop Bop, a gravadora que lançou "Amor Louco"...

R - O Renê, da Wop Bop, que também era uma loja, resolveu fazer uma produção de discos, não sei se já haviam outros discos lançados. Ele resolveu bancar e a gente fez esse projeto, que era bastante eletrônico, tinha o espírito do samba...O disco é muito bem gravado. Tem um deslize ou outro. Acho que a bateria eletrônica foi mal mixada, isso acontece algumas vezes. A produção foi do Jack (N. da R.: R. H. Jackson, produtor de discos), nós gravamos no estúdio dele. O Akira S., se não me engano, toca nesse disco e acho que ele fez baixo.

P - "Amor Louco" pode um dia chegar a ser lançado em CD, como os outros? (N. da R.: o relançamento aconteceu no ano de 2001)

R - A Wop Bop fechou e foi um lançamento deles. Acho que existe uma fita master com alguém. Deve estar com o Renê, o dono da Wop Bop nessa época, mas isso é uma coisa que não nos pertence. O Luiz não iria relançar uma coisa que não é dele.

P- Na época, algumas críticas davam conta que a sonoridade do disco "Amor Louco" estaria próxima a MPB. Mas ao mesmo tempo, acho, ele é o mais pop da banda. Isso foi intencional?

R - O que a gente buscava era uma coisa mais melodiosa, mais MPB, mas que tinha um toque eletrônico. As coisas mais bem-sucedidas neste LP são aquelas voltadas para o espírito MPB. Os erros estão concentrados nas faixas que tem uma bateria eletrônica mais acentuada.

P - Qual o motivo de existirem nesse disco duas letras em Inglês?

R - "Love Till The Morning" é uma música muito ruim. Escrevi a letra brincando num ensaio para depois fazer uma letra definitiva, mas nunca consegui chegar a uma. Isso grudou na minha cabeça e ficou. Agora, "Chico Buarque Song" eu acho legal. Fiz em inglês porque foi a primeira coisa que ocorreu. Gosto muito dessa música...

P - Tem um trecho da música que é ótimo: "Shine inside your eyes my foolish eyes". Traduzindo: "Brilham seus olhos dentro de meus olhos tolos", que funciona como uma citação à "Olhos nos Olhos" do próprio Chico Buarque.

R - Francamente não foi intencional. Acho legal você ter reparado, porque isso me dá mais o sentido da coisa. Eu pensava numa relação amorosa. Essa música apareceu quando a gente estava voltando de Maresias para São Paulo, aí uma lebre cruzou o meio do caminho. Só deu para ver aqueles olhos brilhantes dela na noite. O começo da música é esse. Para ser franco, essas letras em inglês apareceram porque eu não tinha nada para colocar no lugar.

P - Como foi o show no New Music Seminary em NY? Atrapalhou o fato de terem tocado apenas você e o Thomas?

R - Atrapalhou, sim. Nós erramos ao pedir vistos H no consulado para todos. Esse é o visto de trabalho. Para pedir visto de trabalho no consulado americano você tem que ser amigo do Bill Clinton (risos). No dia em que eu e o Thomas estávamos lá, reparamos que pessoas na nossa frente pediram esse visto e sacamos que os funcionários do consulado estavam impondo enormes dificuldades. Então pedimos visto de turista, mas eles colocaram no nosso passaporte, em inglês, que era apenas para assistirmos ao New Musical Seminary, não para tocar. Por isso que acabamos indo somente eu e o Thomas. Compramos lá uma bateria eletrônica e uma guitarra. Eu levei minha gaita. Para esse show, a revista Bizz tinha destacado um jornalista, o Mike Coleman, que escrevia para a Rolling Stone, ele gostou muito. Só tinha brasileiros nesse dia, muito poucos estrangeiros, como sempre. Tinha umas quarenta pessoas num lugar muito pequeno. Um dos grupos que participaram do seminário e estava dando autógrafos entre os intervalos do evento era o De La Soul. Naquela época eles eram praticamente desconhecidos. Nós passamos perto deles e eu perguntei de quem se tratava e o Thomas respondeu: "É o De La Soul". Os caras estavam dando autógrafos para uns três ou quatro garotos. Foi muito prestigioso para o Fellini tocar em Nova York.

21 - Qual foi o fator determinante para o "derradeiro final" do Fellini?

R - O ponto final do Fellini se deveu a um certo esgotamento de nossa parte. Seis anos insistindo, fazendo discos independentes. Chega uma hora que dá uma cansada. O ano de 1990 também marca um certo refluxo do rock no Brasil, esse rock com cara de anos 80. O Thomas resolveu morar na Alemanha. Foi uma decisão unânime e da qual achávamos que não ia voltar atrás, como até agora não voltou. Eu acredito que se o Thomas estivesse morando no Brasil, já teríamos retornado com o Fellini há muito tempo. Como ele ficou fora, a coisa se resolveu por aí, mas a memória das pessoas é muito forte, gente que foi ver o show com 15 anos... As pessoas guardam recordações de um grupo que tem quatro discos, todos independentes, que não devem ter vendido grande coisa, raramente aparecíamos na televisão...Um grupo que só tocava em rádios alternativas, aparecia na revista Bizz de vez em quando... É um grupo muito querido...Eu acho que tudo que fiz na minha vida depois disso tem muito a ver com a banda. Reneguei o Fellini durante muito tempo porque tinha preocupações intelectuais... Sabe quando se acha que é velho demais para fazer aquilo?. Eu me revoltava contra o esquema "rock star", aquela história de você empunhar o microfone e fazer as gatinhas gemerem. Esse esquema nunca foi a minha cara, sou muito tímido. O fim do Fellini talvez tenha a ver com isso. O fato de se apresentar, isso pesava um pouco. Eu tinha pretensões literárias, acho que uma coisa batia com a outra. Foi sempre uma relação muito complicada.

P - O pessoal do Ira! lançava farpas contra o Fellini sempre que concediam entrevistas. O Nazi e o Edgard diziam que a crítica especializada só falava bem da banda porque vocês eram jornalistas. Houve alguma mágoa com eles por causa dessas declarações?

R - Primeiro, eu acho que é uma acusação estúpida porque o Thomas trabalhava na Bizz e nunca votou no Fellini quando foram escolhidos os melhores do ano, posso garantir isso. O Thomas é um cara com preocupações éticas, nunca faria isso. Eu trabalhava numa revista de cinema, a Set, que era junto com a Bizz, mas não tinha a menor influência sobre eles, pode acreditar. Agora o Ira! não tem do que reclamar. Eles estão aí até hoje. Chegamos a tocar juntos em Nova York, somos amigos. Eu acho o Edgard Scandurra o melhor guitarrista do Brasil e não tenho a menor dúvida sobre isso. Particularmente não gosto do som que eles fazem. Acho que eles também nunca apreciaram nosso som. São coisas muito diferentes, posturas muito diferentes. Independente disso, são simpáticos. Naquela época a gente também falava coisas de efeito. Isso nunca deu briga.

P - Olhando agora, qual a avaliação você faz do trabalho do Fellini? É possível mesmo fazer música juntando gostos diferentes?

R - Eu acho que é. Quando se trata de um grupo, você precisa ter uma unidade básica. A unidade básica do Fellini era eu e o Thomas. Eu fazia as letras, fazia algumas melodias em cima dos temas que ele propunha. E o Ricardo sempre com idéias muito importantes. É necessário ter isso: uma unidade básica, mesmo que seis gostos sejam diferentes. Você tem que acreditar em alguma coisa conjunta, do contrário, não funciona. Agora, é uma questão de química, eu vejo pelas duplas em geral. O que nós tínhamos no Fellini era assim: um cara com preocupações intelectualóides, que era eu, (risos) e um cara que conhecia música e era excelente músico que era o Thomas. E ele tinha bom gosto...

P - Esse lado intelectualóide era o seu lado literário?

R - (Risos) Não vou dizer intelectualóide. Não me julgo intelectual, mas eu tinha preocupações literárias. Essa tradição, que vem do Velvet Undergound, de letristas com esse tipo de preocupação rende boas coisas. Modestamente falando, acho uma das grandes atrações do Fellini é o fato de ter essa visão maluca, excêntrica da vida. Tem algumas passagens das letras que são poéticas. Isso era um atrativo, não apenas a postura musical. É um casamento muito feliz. Acho que o Velvet Underground tinha isso, o Joy Divison tinha isso, os Smiths também. Eu não me julgo a cabeça poética do Fellini. Para mim, a coisa que mais dava vida para o Fellini é a boa fé do Thomas.

P - O seu trabalho como escritor não seria uma extensão de sua participação como letrista no Fellini?

R - Acredito que não. Quero acreditar que não. É um trabalho diferente, não gosto de ver como uma extensão. Acho que são épocas diferentes. Quando se faz uma letra, você está sujeito a música. Então tem uma série de contingências. No meu caso tinha a melodia, eu dependo dela, dependo de uma idéia despertada por ela, dependo do clima, do que eu estou vivendo com o grupo. A literatura, o livro de contos que escrevi, é diferente, é uma outra postura.

P - Mas é possível perceber que existe um caráter inconclusivo nos textos, e as letras do Fellini também tinham isso.

R - Talvez nesse espírito, sim. São inconclusivos porque eu acho que a vida é assim. A não ser a morte, que é um belo selo para tudo, o resto tem esse caráter inconclusivo. É uma passada de bola muito modesta ao ouvinte e ao leitor para que eles tenham conclusões próprias. Eu detesto transmitir mensagens. Acho que ninguém é dono de verdade para isso.

P - Fale um pouco sobre a repercussão do Fellini fora do Brasil. Ainda hoje, o restante da população deste planeta se interessa pelo som de vocês?

R - O Thomas levou alguns discos para tentar ver uma saída, uma gravadora, mas nunca se interessaram. Se houve alguma execução em programas de rádio lá fora, eu não fiquei sabendo. O Thomas fez um trabalho solo de bossa nova com a mulher dele chamado The Gilbertos. Eles gravaram coisas muito legais. A gravadora do David Byrne se interessou, mas depois voltaram atrás. Era uma oportunidade do Thomas se lançar e acho que iria ser um barato. Era uma bossa meio eletrificada, mais para um lado deprê.

P - Depois de todo esse tempo você já conseguiu definir que tipo de som o Fellini fez em toda sua discografia?

R - Não. Eu gosto de pensar que era um grupo que fazia uma certa bossa eletrificada, mas eu não sei se consigo definir...Era um grupo esquisito que despertou nas pessoas um senso de liberdade estética. E despertou também um senso de diversão, porque a não levávamos as coisas muito a sério. Acho que a música contribuiu para deixar as pessoas um pouco mais felizes ou se não ficaram felizes, ficaram aliviadas.

Um comentário:

por às disse...

Excelente entrevista. parabéns!!

Felipe