P - Vamos falar do começo do Fellini. O Cadão disse na entrevista que você queria fazer uma banda na qual você tocasse baixo e ele faria as letras. Como é que foi esse processo de formação?
R - A gente se conhecia há muito tempo. Nós fizemos a ECA (N. do R.: Escola de Comunicações e Artes da USP) e a gente era da mesma turma de libelus, pessoas que simpatizavam com a Libelu (N. do R.: Liberdade e Luta, um grupo político da universidade). Gostavamos das mesmas coisas, do mesmo tipo de filme, tinhamos as mesmas preferências culturais, gostavamos mais ou menos das mesmas bandas. O Cadão não era um cara ligado em música. Eu era muito mais do que ele, mas ele tinha essa vontade de fazer uma banda. Ele já cantava numa outra banda , cujo nome não recordo. O problema é que eu já tocava com tantas bandas...Eu tinha comprado um baixo e estava louco para sair da bateria e poder compor, fazer outras coisas. E essa foi a chance, O Cadão era a pessoa perfeita. Um cara para cuidar dos vocais , um cara que eu achava que poderia ter idéias legais...
P - No Voluntários e no Smack você tocava bateria?
R - É, eu tocava bateria e participava das composições, mas sabe como é, o baterista não tem muito a dizer numa banda na parte das melodias e tal. Eu queria fazer isso. Então o Fellini surgiu assim.
P - Como é que foi o processo de composição para as músicas do primeiro álbum?
R - A gente se reunia duas vezes pôr semana lá no Morumbi, na casa do Ricardo Salvagni. Ele foi o último a entrar para a banda. Começamos eu e o Cadão, a gente fez algumas coisas. Depois entrou o Jayr Marcos, porque ele tocava com essa primeira banda do Cadão e eu já tinha tocado com o Jayr, se não me engano. Faltava o baterista. Por indicação do Caito, ele perguntou "por que não o Ricardo". Nessa época, ele tava tocando bateria numa banda obscura, alías ele tocava muito mal. A gente achou super-legal a idéia (de Ricardo entrar para o Fellini), porque a gente pode ensaiar na casa dele, mas era num lugar dificil para chegar de ônibus. Mesmo assim, ensaiavamos duas ou três vezes por semana. A gente estava entusiasmado naquela época, adoravamos ensaiar. O Jair outro dia lembrou de uma coisa interessante: o primeiro ensaio que nós fizemos foi exatamente no dia 18 de maio de 1984 que é a data da morte do Ian Curtis. A gente ficou assim: "Opa! Vejam só! O destino, a sincronicidade...". A gente fez um repertório bem legal, fizemos umas demos, pôr sinal que ninguém conhece. Antes de entrar em estúdio, gravamos uma demo com todo o repertório que tá no disco e mais uma música que não entrou no disco e se chama "Eclipse", uma letra muito legal do Cadão, mas é meio "dark". Foi uma demo bem mambembe mesmo. Depois a gente gravou num estúdio mais decente "Shiva" e a versão de "Rock Europeu" que está nela é bem engraçada pôr que o Ricardo erra o tempo inteiro na bateria e ficou engraçado. Mas são documentos preciosos, eu adoro ouvir essas fitas o tempo todo.
P - "Rock Europeu" foi o grande hit de vocês. O Cadão diz que vocês ficaram marcados por essa música. Vocês fizeram umas coisas mais experimentais e a imagem do Fellini ficou associada ao nome dela...
R - Os grupos sempre ficam associados a música que faz sucesso e "Rock Europeu" foi a música que projetou o nome Fellini com peso, mas eu não sei se a música tocou mais do que "Teu Inglês"... "História do Fogo" tocou legal, mas não tanto quanto "Rock..."
P - "Nada" acho que tocou muito...
R - (surpreso) "Nada"! É mesmo?
P - Tocou muito em Porto Alegre. Conhece a Rádio Ipanema? Ela toca lá ainda.
R - Legal, é uma das minhas prediletas, mas o resto da banda não acha muito legal.
P - Tem uma gravação ao vivo de "Nada", que está em "O Adeus de Fellini"...onde foi gravada?
R - É a última música que esta no disco de vinil. A gravação foi no Madame S. Um show bem do começo da banda. Essa versão tem uma outra letra que é a primeira que o Cadão fez, depois ele mudou...e a gente deixou também....essa é uma coisa típica do Fellini mesmo. Eu acho que são duas as principais contribuições do grupo ao rock e que deixaram a gente com esse status de banda cult. Uma é a música do Fellini, muito legal, instigante, o Cadão é um letrista extraordinário. A outra é o comportamento, é a atutide, o Fellini era uma anti-banda. Fizemos isso propositalmente para mostar um pouco como é ridículo você seguir determinados padrões de comportamento dentro da indústria musical, tipo se associar a uma gravadora, ter um comportamento típico de banda de rock, destruir hotéis, fazer solos de guitarra, usar cabelos compridos, adotar uma postura "rebelde", esse tipo de coisa. A gente sempre foi contra tudo isso, contra esse polo musical determinado pelas gravadoras do Rio de Janeiro. A gente sempre detestou essas bandas cariocas...Barão Vermelho, essas coisas que tinham na época. E em São Paulo nessa época havia um outro polo...era sub, era "sub-tudo" mesmo...era undegruond mesmo, era o sub-undergruond...
P - O "underground do underground"....
R - ...Era o "faça vocë mesmo". A gente criava os nossos espaços para se apresentar, criou formas de lançar nossas músicas na época e o Fellini foi um dos que mais falou "é por aqui, ó". A gente fez tudo do jeito que queriamos fazer e incluir essa faixa "Nada" foi uma coisa típica. Quem vai incluir uma gravação ao vivo tão ruim, tão fuleira e que, ao mesmo tempo, mostra exatamente como era o show. O Cadão no começo da gravação falou "a gente vai tocar na Vila Madalena" (imita)... O Alex Antunes estava no show e gritava "imita o Nazi", porque o Cadão gostava de imitar o Nazi (do Ira!) no palco...
P - Foi dessa época que nasceu a polêmica entre vocês e o Ira!
R - Não daí, não dessa época. O Ira! rapdinho se associou a essa coisa de gravadora e rapidinho também entrou para a turma das bandas que tinham bode do Fellini porque achavam que éramos favorecidos pela imprensa pelo fato de eu trabalhar na Bizz ou, principalmente, pelo fato dessas pessoas que trabalhavam na revista serem amigos nossos: Alex, Bia Abramo, Minho K, o Scott (José Augusto Lemos) essa moçada. Todos simpatizavam com as músicas e por isso o pessoal ficava puto. Em 1987, quando a gente ganhou o primeiro lugar da crítica, empatados com o Titãs, eles acharam o fim da picada, não suportaram essa idéia. Nessa época, o Ira! estava lançando o "Psicoacústica" e eu fiz o press-release e eles ficarm putos com o que eu escrevi. O Nazi e o André vieram até minha casa possessos de raiva. Eu não me lembro exatamente o porque, mas o "press-release" deveria ter alguma coisa....eu não tinha gostado do disco e deixei isso transparecer , o que é uma coisa estúpida, deveria ter me recusado a escrever, mas eu era muito amigo deles. Isso causou um mal-estar que durou uns dois anos...uns dois anos que eu não cruzava o Nazi. De amigos muito próximos, a gente virou...sabe.
P - Tanto é que nessa época eles começaram a bater mais em vocês na imprensa. Vocês chegaram a ter algum tipo de aproximação naquele festival em Nova York?
R - Aquele festival marcou a nossa reaproximação, a gente conversou. Antes de irmos para Nova York, a gente se apresentou no programa do Kid Vinil na TV Cultura (Boca Livre). O Ira! se apresentou lá e a gente. A nossa apresentação lá foi horrivel, mas não porque tivessemos tocado mal, foi pelo fato de o som ser captado pôr microfones de lapela. Uma coisa grotesca, quando vi o resultado final... foi uma meeerrrda! Eles viram isso na televisão e falaram "Pô bicho. Eu fico impressionado. Vocês vão para Nova York e aquilo ali na televisão foi qualquer nota, horrível". E eu: "É, vocês tem razão". Com o passar do tempo, ele começaram a nos respeitar. Eu vi entrevistas recentes do Nazi dizendo que respeita muito, apesar de não gostar do Fellini e por aí vai. É mútuo. A gente não gosta da música deles e eles não gostam da nossa.
P - E com os Titãs? O Cadão falou numa entrevista que eles eram os "alternativos oficiais"...
R - ...pois é, veja a situação hoje, como é irônica. Quem são os Titãs hoje no rock and roll?
P - Os "oficiais oficiais"...
R - É...eles ficaram putos, não sei porque, foi à toa. Foi uma bobagem, não vejo problema nenhum...
P - Teve a história de uma demo que vocês mandaram para a WEA e eles fizeram uma campanha contra, vetaram a contração de vocês.
R - Isso daí eu não sei, cara...são boatos, mas vai saber qual é o fundo disso. Eu duvido muito dessa história: "Titãs vetando Fellini". Acho que não, as gravadoras não tinham nenhuma noção do que era o Fellini e de como vender o Fellini, um produto que para marketing é muito dificil, ainda mais naquela época. Acho que não houve veto.
P - Voltando ao começo, quando vocês gravaram a primeira demo quem vocês procuraram? O Calanca? Mais alguem?
R - Isso é uma coisa que não está muito precisa na entrevista do Cadão. Ele não se lembra dessa história direitinnho. A gente resolveu bancar a gravação toda. A gente dividiu. O Jair não tinha grana e dividimos eu, o Cadão e o Ricardo e bancamos. Foram dois meses num estúdiozinho que ficava numa travessa da Av. Sumaré. Tinha oito canais, era bem simples, uns caras legais. Eram dois engenheiros de som. Então a gente, gravou o disco e com a fita pronta mostramos para o Luis Carlos Calanca (dono da loja e selo Baratos Afins) e ele não quis lançar...
P - O Cadão fala de um estranhamento dele...
R - O Calanca ficou meio assim. Era a única chance que a gente tinha de lançar algo. Depois de alguns meses, ele topou lançar. Acabou lançando e foi super-legal. Aí fizemos tudo, capa...
P - O nome "Adeus de Fellini", essa perspectiva do final da banda foi por acaso?
R - A gente achou engraçado a idéia de lancar o primeiro disco falando disso, o adeus de Fellini. E ao mesmo tempo a gente quis fazer uma referência esperta a efemeridade, aquela coisa efêmera de você ter uma banda independente, que pode acabar a qualquer momento. Naquela época algumas bandas faziam dois singles e acabavam. Eram essas duas coisas: primeiro porque era engraçado mesmo e depois porque existia esse risco mesmo.
P - O Cadão acha o segundo LP (Fellini Só Vive Duas Vezes) o melhor de todos. Você concorda? Se você tivesse que fazer um ranking, qual seria a sua ordem de preferência.
R - Putz, bicho. Eu ouvi tanto esses discos, ouço tanto esses discos até hoje...Eu gosto de todos. A cada momento eu gosto mais de um deles. No momento é o que tenho ouvido menos nos últimos anos. Teve épocas em que eu ouvia direto o segundo. O disco que eu mais tenho bode, o que mais me dá raiva é o terceiro (Três Lugares Diferentes)....
P - Por que? Ali vocês antecipavam uma série de coisas que estão sendo feitas hoje na música pop brasileira...
R - É, mas me dá raiva de não ter tido baixo nesse disco. Eu ouvia as músicas e sentia falta de um baixo. Na época, eu falei "Foda-se. A gente vai sem baixo mesmo". Mas é o que tem no segundo.. O que eu gosto mais é o primeiro. É uma explosão, é um jogo de idéias legais, todas as músicas eu acho muito legais, tem uma histórinha , explora uma atmosfera, um clima, uma história engraçada. É sexy. E eu consigo ouvir direto, sem parar.
P - No segundo prevalece mais a poesia do Cadão.
R - É o que marca a identidade do Cadão. No primeiro ainda ele faz muitas referências, tem muitas citações, é mais pós-moderno...
P - A bateria eletronica ouvida no segundo disco ainda existe?
R - São duas baterias. Uma é uma Drumatix que era do Ricardo e pode ser ouvida em Tabu. A outra era uma Roland e hoje não tem mais nada.
P – O segundo LP foi gravado na sala de estar da sua casa, não foi?
R – Exatamente. As fotos da contra-capa foram feitas lá. Não foi na Oscar Americano, como o Cadão disse na entrevista, foi na Oscar Caravelas, uma travessa da Heitor Penteado. “Mãe dos Gatos” foi improvisação pura, a única música que o Fellini fez assim, a letra foi improvisada. Tem uma hora que ele fala “Mitsu, Mitsu” é porque o meu gato Mitsu passou no meio da gravação e o Cadão ficou chamando o gato. Por isso que a música se chama “Mãe dos Gatos”. Tem a história da foto com o gato no colo...na verdade as pessoas acham genial, mas foi meio por acaso também.
P - O nome da banda tem algo a ver com o Felline, disco dos Stranglers.
R – Tem, com certeza. Era um disco que a gente amava.
P – Eu lembro que eu assisti a um show de vocês no Espaço Retrô, que foi o de lançamento do Lp “Amor Louco” no qual vocês tocaram antes e depois passou uma série de vídeos deles. É a referência principal de vocês?
R – É, com certeza eu acho que unia não só o pessoal do Fellini, mas de outras bandas também. Lembro de ver o pessoal do Legião Urbana usando camisetas do Felline, o Bonfá, se não me engano. Gozado que esse é um disco que lá fora, na Inglaterra, o pessoal despreza. Eles acham muito comercial. Eu acho que é um disco magnifico, porque ele apontou uma série de caminhos para a gente. Tem muitos violões, tem um baixo frontal , que ainda é uma grande influência, principalmente no primeiro disco...aquele baixão na frente quase determinado a melodia, isso é influência do Jean Jaques Burneau, baixista dos Stranglers. Eles estão na ativa até hoje. Eu perdi um show deles há dois meses, mas também o cantor principal deles saiu, aí é foda.
P – Eu ouvia “Always The Sun” muito em rádio.
R – Eu também lembro disso...
P – ... É uma coisa bem comercial...
R - ...É bem comercial, é verdade...
P – Bom, pelo o que você acabou de falar, “Três Lugares Diferentes” é o disco que você menos curte, porém eu acho que ele apresentou uma série de diretrizes para o rock brasileiro...
R – É verdade. Se as letras foram definidas no segundo disco, a parte musical mesmo, a identidade musical é definida no terceiro disco. O único problema era com o som. Quando eu ouço o disco hoje ele me dá raiva, porque eu acho que qualquer pessoa nota que tá um som esquisito, falta baixo...
P – É um disco “Low-fi”, né?
R – É “Low-fi”. Mas “Teu Inglês”, por exemplo foi super resolvida. É uma faixa que não nada que tirar nem pôr. A percussão do Silvano Michelino é espetacular também. “Zum Zum Zum Zazoeira” está superlegal também.
P – Qual é a relação de vocês hoje com o Calanca?
R – Muito cordial. Eu fui almoçar com ele duas vezes. Eu só tenho certo medo de...no futuro...porque eu conheço tantas histórias de bandas que no início se davam superbem com as gravadoras depois acabam brigando por causa de direitos autorais, esse tipo de coisa. Por que está tudo num contrato e ninguem tem cópia desse contrato. Ninguem sabe exatamente quem é o dono... No caso do Fellini, a matriz do primeiro disco a gente que bancou, do segundo e do terceiro a gente gravou em casa e ele bancou a parte das mixagens... Então a gente não sabe quem é exatemente dono do que. Como ele relançou em CD, ao meu ver deveria Terri sido feito um novo contrato. Eu acho que é isso que se faz, ou pelo menos ter pedido uma nova assinatura porque as bandas estariam cedendo os direitos mais uma vez para um novo formato. Mas não houve nada disso. Ele incluiu as faixas-bônus e eu não fui consultado. Mas no geral a relação é boa.
P – Mas vocês recebem direitinho...
R – A gente nunca recebeu um tostão...
P – Nem na época do lançamento dos discos?
R – Pelo contrato era estabelecido que a gente tinha um percentual em CDs. Foi estabelecido pelo contrato, não é sacanagem. Ele não está deixando de pagar. E ele também não é a pessoa que tem que repassar direitos autorais. Quem arrecada é que passa para a gente. A Anacin, que é uma empresa arrecadadora, paga o Luis que é o editor e ele paga para a gente.
P – Voltando aos lançamentos do Fellini, existe ainda “Amor Louco”? Eu acho que é uma tentativa de aproximação de vocês com o pop, confere?
R – (pequena pausa) Não. Eu acho que não...
P – ..Para mim vocês devem ter pensado o seguinte “a gente já experimetou demais, vamos tentar um formato mais convencional”...não que não seja bom...
R – Eu acho que o resultado final de fato ficou assim, mas não porque a gente tivesse a intenção. A gente quis simplesmente fazer um disco com condições técnicas legais...
P – O Renê Ferri (dono da loja e selo Wop Bop) é quem pagou tudo...
R – Ele que pagou tudo. O Luis não quis bancar...Eu lembro que a gente fez a matriz foi gravada num negócio digital, mas foi o máximo que a gente chegou em termos de tecnologia. Foi gravado em 16 canais, levamos um tempão gravando. Demorou muito porque o cara que estava produzindo, o R.H. Jackson, viajou, tentamos terminar com o Akira, mas não deu certo. Esperamos o Jackson voltar depois de dois meses viajando. Demorou quase meio ano, tanto que só foi lançado em 1990. Mas eu acho que no resultado final é que ficou talvez essa coisa meio pop porque é um disco mais bem acabado que os outros. E também a gente fez uma concessão (talvez a única vez, se é que dá para chamar isso de concessão), uma tentativa de fazer uma música que eventualmente tocasse numa pista de dança: “Love Until The Morining”. Eu trabalhava na Stiletto e estava muito ligado nessa coisa de Acid House, eu ouvia muito isso e falamos “vamos fazer uma música para pista de dança”, mas foi a única concessão. Mas eu não acho que é um disco pop. Na verdade, eu acho um elogio dizer que ele é pop. Eu não tenho problemas quanto a isso.
P – Uma coisa que vocês precurssaram foi a de cantar letras em outras línguas. Existem letras em alemão, em italiano e em inglês. O que você acha dessas bandas nacionais que cantam em inglês.
R – Eu acho tão legal fazer letras em português...quando você tem o que dizer, né? Tanto que com o The Gilbertos por exemplo eu faço letras em tudo quanto é língua. Eu acho que é um pouco uma tentativa de fugir da realidade, de fugir do fato de você ter que dizer alguma coisa. O Cadão é um “natural” (N. do R.: ele usa a palavra em inglês), é um cara que naturalmente diz de uma forma poética maravilhosa. Ele fala da infânica, recordações, memória, ele fala de amor, romances... E eu não sei...Se você não tem nada a dizer, eu acho que tudo bem, pois unversaliza o teu trabalho, você pode mostrar em qualquer lugar, para qualquer pessoa do mundo. Mas você não pode existir a ilusão de ter que cantar em inglês para as pessoas entenderem fora do Brasil. Não é pôr aí, não. Eu acho as pessoas podem fazer letras em inglês por que é adequada ao formato rock. Ela encaixa com uma grande naturalidade se você está fazendo rock...E eu lembro dos Pin Ups cantando em inlgês...Eu acho que banda brasielria deveria cantar em português, é o que eu acho. Aliás, é uma coisa que eu discuti com tanta gente. Tem gente que acha que para penetrar no mercado internacional você tem que cantar em inglês. Porém, outras pessoas acham que o mercado internacional gosta do português, do som do português...Na época da Bossa Nova o fato de muitas musicas serem traduzidas para o inglês ajudou imensamente na projeção internacional, não tenho a mínima dúvida. Tanto que Sinatra, Ella Fitzgerald, gravaram coisas da bossa nova porque tinha versão em inglês. Mas eu acho que essas bandas de rock nunca vão ter essa projeção...
P - Mesmo porque o que eles fazem aqui tem quinhentos fazendo lá...
R - Exatamente. Eu gostaria de ver novos Cadões aparecendo, novos Renatos Russos...
P – O que eu sinto é que essa geração quer romper um pouco com a geração dos anos 80, esse rock dos anos 80. Teve muita coisa boa nessa época, mas teve muito lixo, muita pose, muita pretensão...
R - É? Me parece um pouco falta do que dizer ou de falta de saber como dizer. É um problema sério. Já te disse que eu mesmo não saberia...se eu tivesse uma banda eu preferiria me refugiar em letras em inglês. As pessoas fazem como um recurso até meio calhorda, eu diria assim...De não ter o problema de fazer letras em português e de ter que dizer alguma coisa...É um problema sério. Faltam mesmo Cadões, faltam Russos. O Russo é uma pessoa que mostou como é possivel você se expor atraves das letras, é uma coisa que muita gente não quer, não gosta ou tem medo de fazer. O Cadão encontrou um outro caminho, mas que requer muito requinte, muita cultura...E ele é um intelectual.
P – São para você os dois melhores letristas do rock brasileiro?
R – Ah, eu não tenho dúvida, são as pessoas que estabeleceram os primeiros parametros de letras no rock nacional. Até então ninguem sabia o que dizer. No Voluntários da Pátria (as letras todas eram minhas) ou mesmo no Smack, a gente não sabia o que falar. Então a gente vinha com um discurso politico, porque todo mundo era politizado, éramos jovens, universitários, estudantes, tinhamos letras assim...Eu acho isso horrível. Acho as letras do Ira! horriveis, as letras dos Titãs, salvo uma ou outra, são horríveis. Acho que Renato Russo e Cadão estão lá em cima....Acho que o Cazuza era uma merda, uma merda...O Alex Antues era muito bom. É um grande talento, tinha me esquecido dele. É que o Cadão deixou mais coisas. O Russo também, mas o Alex deixou um disco com letras maravilhosas. O Alex era um grande letrista e ainda é porque ele tá com um trabalho novo, ele me mostrou uma demotape chamada Shiva Las Vegas. Quem tá envolvido nisso também é o Miguel Barella. Voltando ao papo dos letras, só quero deixar isso bem claro, Cadão e Renato Russo estabeleceram padrões que ninguem depois rivalizou. Nenhuma outra pessoa depois conseguiu mostrar um outro caminho que não fossem essas duas opções.
P – Uma história que entrou para a antologia do rock nacional foi a de vocês terem uma música tocada no programa do John Peel. Como é que o disco foi parar nas mãos dele, como é essa história em detalhes.
R – Eu mandei o primeiro disco para ele. Passaram uns seis meses e eu recebi um pacote que chegou na minha casa. Eu abri o tal pacote e tinha uma carta do John Peel mais ou menos assim “Prezado Thomas, eu toquei músicas do Fellini no meu programa. Recebi um monte de cartas de ouvintes que estou passando a você.” Aliás, saiu até uma foto dessas cartas na revista Bizz. Tinha uma carta de um fã gay...Eu não consigo me lembrar com quem estão essas malditas cartas. Nessa minha viagem pela Europa, tanta coisa foi perdida, fitas de vídeo com shows do Fellini e as cartas, que são uma preciosidade....Tinha uma carta de um presidiário....
P - É, essa história é famosa. Um presidiário que gostou muito do som da banda “mexicana”. Ele confundiu a nacionalidade de vocês...
R – É. Tem a carta de um fã gay e tem a desse presidiário. Eu gravei uma fita e mandei para ele. Aí eu recebi outra carta dele dizendo: “infelizmente na prisão eu não posso portar cassetes. Mas assim que eu cumprir a minha pena, daqui a oito anos, eu espero ouvi-la.”
P – Ele era de Londres mesmo?
R – Era de uma prisão de Durham, que fica perto de Londres, inclusive eu a conheço.
P – Você fez contato com ele depois?
R – Não, nunca mais...O John Peel eu sei que ele tocou as músicas da gente não apenas no serviço doméstico, no programa dele na Radio One, como também no serviço internacional da BBC. Muita gente na Alemanha e em outros países ouviu o Fellini através do John Peel também, pôr conta do programa que vai para o serviço internacional. Teve o caso de um alemão que ouviu e que mandou depois uma nota de 20 dólares e um bilhete “Por favor, mande um disco do Fellini”. Eu mandei para esse cara na Alemanha e ele ficou tão surpreso de ter recebido o disco de fato, que ele contou essa história numa outra carta para um programa de rádio superconhecido lá...
Onzenet – Que é o do Axel Sommerfeld...
Thomas – E o Axel contou essa história no programa dele.
P – Ele tocou “Outro Endereço, Outra Vida”...
R – Mas o John Peel também tocou essa música. Esse alemão tinha gravado o programa do Peel tocando e me mandou esse cassete com o as duas gravações, a do Peel e a do Axel.
P – No CD de “Três Lugares Diferentes”, tem um tape de vocês na Rádio Cultura no programa do Serginho Groismann...
R – Isso daí tá no cassete de Amor Louco. A música que nós tocamos lá ao vivo no programa “Matéria Prima” chama “Aeroporto”. Uma gravação muito legal, eu gosto muito dessa música.
Onzenet – É inédita, então?
Thomas – Tá nesse cassete e tem também uma outra música muito legal chama “O Destino” (cantarola).
P – Uma coisa que eu notei é que nunca ninguem se interessou em regravar músicas de vocês...
R – Interessante isso. Outro dia me contaram uma história que o Lobão numa entrevista coletiva recente aqui em São Paulo, tava cheio de jornalistas e um deles disse que “Pô, várias músicas desse seu disco novo lembram muito o Fellini. O que você acha dessa história”. Ele respondeu: “É verdade. Muitas pessoas me falaram nisso”...É verdade, eu me pergunto isso, mas um dia vai aparecer alguem que vai gravar alguma música nossa.
P – Você acha que o Fellini está marginalizado pela mídia de hoje...
R – Eu acho que não é marginalizado...Não acho, não. Eu acho que é marginalizado apenas pela ShowBizz, acho mesmo. O pessoal que está lá agora faz troça dos anos 80, dessas bandas do anos 80. O Sérgio Martins me ligou outro dia falando que eles estavam fazendo uma matéria sobre as bandas “One Hit Wonders” (N. do R.: cuja tradução é maravilhas de um sucesso só), do tipo Fellini, Mercenárias, etc. Ele me perguntou o que eu achava dessas bandas. Eu respondi: “Pô, eu não tô entendendo o sentido dessa matéria da ShowBizz. Você está dizendo que esses grupos não deveriam ter existido? Que a gente deveria ter largado?”. Bom, 99% das bandas que me influenciaram nunca tiveram hits. Eram totalmente desconhecidas, efêmeras, que acabaram depois de um ou dois discos, mas eram superlegais, instigantes para cacete, que tiveram coisas geniais. E eu peço a Deus que bandas não desistam nunca de fazer música porque não tiveram hits. O Chico Science se estivesse vivo hoje ajudaria a projetar mais o Fellini. Talvez ele até resolvesse gravar uma música nossa.
P – Você ficou supreso com isso? Um popstar como ele falar que gostava do Fellini?
R – Não muito. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde iria aparecer alguem. Tem tantos exemplos pôr aí, veja o Velvet Underground, guardadas as devidas proporções, ficou mais de dez anos na obscuridade...
P – Tenho um amigo (Eduardo Ramos, da Slag Records, selo de demo tapes) que diz que o Fellini é o Velvet brasileiro...
R – É, dá para dizer. Sob um certo aspecto, dá para dizer. Guardadas obviamente as devidas proporções. Mas num sentido de falar sobre uma banda que fez um negócio que estava anos à frente do que viria acontecer mais tarde, iria apontar caminhos superimportantes a serem descobertos mais tarde, com certeza.
P – Voltando as músicas, “Chico Buarque Song” tem uma coisa curiosa. Você entrevistou o Chico Buarque uma vez para a revista Bizz. Não houve nenhuma relação da sua entrevista com a música?
R – Não. Eu acho que a música só chama Chico Buarque Song porque ela cita “Do you stll hear Chico Buarque at night”, que é errado por sinal. O certo seria “Do you listen Chico Buarque...”. Tem vários erros de inglês nessa letra.
P – Mas tem uma citação nela que pouca gente deve ter percebido de “Olhos nos Olhos”.
R – Eu acho que muita gente percebeu...O verso “Shine inside your eyes in my foolish eyes” tem a ver com “Olhos nos Olhos”, com certeza. Eu não sei se o Cadão fez isso de propósito. Mas essa é música mais completa que o Fellini já fez. Eu me lembro de compor essa música em Salvador, nas férias em 1988 e de a gente ficar um ano arrumando um arranjo legal.
P – Quais são as suas dez mais do Fellini. Se você tivesse que fazer uma coletânea, quais músicas escolheria?
R – Quantas vezes eu ficava sentado em boteco tomando cerveja, sem nada para fazer e escolhendo músicas para um “Best of Fellini”. Eu acho que são as músicas que estão no repertório do show (N. do R.: que aconteceu em dezembro de 1998 em São Paulo, no Rio e em Brasília) com certeza. Tem uma ou outra que não dá para tocar ao vivo, ou ninguem gosta. Uma coisa é juntar as tuas preferidas e outra é pensar num “best of...
P – Qual seria aquela música que é a cara do Fellini ou então uma que resume todo o trabalho de vocês.
R – (longa pausa) Eu sempre achei por uma razão totalmente subjetiva que a música mais legal do Fellini e a mais representativa é “Nada”.Mas eu não consigo explicar o porque dessa escolha. Mas “Chico Buarque Song” também acho que é bem representativa, mas me parece que ela não é uma música que tem muito apelo junto as pessoas que a ouvem. É legal para cacete, mas não sei se teve um apelo que outras músicas tiveram.
P – E “Zaune”?
R – É uma música legal, mas acho que não é tão representativa assim.
P – É tua letra, umas das poucas que você fez...
R – Eu fiz duas letras na verdade...
P – Você fez “Tudo Sobre...(pausa) “Tudo Sobre Você”...me acompanhava nos meus dias de fossa.
R – O Renato Russo gostava muito dessa letra. Ele adorava essa música. Ele queria gravar duas músicas que pôr acaso as letras eram minhas. Uma delas é do Voluntários, que se chama “O Homem que eu Amo”. E essa música.
P – Vocês ajudaram muito o Legião Urbana aqui em São Paulo.
R – Eu emprestei quantas vezes minha bateria para o Marcelo Bonfá. Ele viva almoçando em casa. A gente ficava na piscina batendo papo. E eu tinha carro e levava eles, dava aquela força. O Renato Russo, além do Bonfá e do Dado, dormia na casa do Cadão , Minho K e do Alex Antues, que moravam juntos.
P – Vocês ficaram supresos com o estouro do Legião?
R – Eu fiquei supersurpreso. As pessoas que ouviam Legião Urbana achavam que o Russo cantava legal, era um letrista muito bom. Mas para ser sucesso nacional, eu não apostaria em nenhum das bandas daquela época. Muito menos nos Titãs. Quando eu vi o primeiro disco com aquela foto de capa, quando ouvi “Sonifera Ilha”, pensei que nunca iria ser sucesso e me enganei. Com o Renato Russo foi uma grande surpresa sem dúvida.
P – Você se enganou com mais alguma banda? Paralamas, por exemplo?
R – Para ser bem sincero com você, eu só gostei do primeiro single deles, “Vital e Sua Moto” e também uma faxia do disco Selvagem, que é uma letra que não é do Herbert, uma coisa sobre “entrei de gaiato no navio”...
P – “Melô do Marinheiro”...
R - São as únicas coisas. Eu respeito a postura do Herbert. Já conversei com ele, já o entrevistei. Ele também é desses caras que tem bode do Fellini. É um cara sincero, honesto. Eu admiro o irmão dele, o Hermano Vianna...Eu o livro dele “O Mistério do Samba” eu peguei em Londres para ler, mas não o fiz ainda. Foi o primeiro cara que abertamente defindia dentro da Bizz música pop, Kid Abelha, Grace Jones na Discoteca Básica...A gente sentava, conversava e ele tinha toda a razão.
terça-feira, 1 de abril de 2008
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